Uma molécula presente na carne vermelha poderá explicar em parte a sua relação com o risco de cancro (e doenças cardiovasculares).
A relação entre a carne vermelha e o risco de doenças crónicas (além dos efeitos negativos para o planeta) é bastante robusta. Inúmeros estudos sugerem que o consumo de carne vermelha e processada aumenta o risco de várias doenças crónicas e mortalidade. Entre outros problemas, o consumo de carne vermelha está associado a um risco superior de doenças cardiovasculares, diabetes e alguns tipos de cancro (Micha et al., 2010; Pan et al., 2011; Talaei et al., 2017; Cross et al., 2007). Além disso, está também associado a um risco superior de mortalidade total, por doença cardiovascular e por cancro (Pan et al., 2012; Sinha et al., 2009; Rohrmann et al., 2013).
Essa associação é especialmente evidente no caso do cancro colorretal, tendo a carne processada sido classificada em 2015 como cancerígena para humano pela IARC e a carne vermelha como provavelmente cancerígena (Domingo & Nadal, 2017; Bouvard et al., 2015; Clinton et al., 2020).
Alguns mecanismos biológicos poderão explicar a associação entre o consumo de carne vermelha/processada e o risco de cancro ou outras doenças, tais como (Zhong et al., 2020; Alisson-Silva et al., 2016):
- A presença de aminas heterocíclicas que se formam pela ação do calor elevado ao cozinhar a carne;
- Tanto o ferro heme como os nitritos presentes na carne vermelha e carnes processadas são pró-oxidantes e podem promover danos oxidativos e inflamação em vários órgãos;
- O metabolismo de nitritos dá origem a compostos N-nitrosos, os quais aumentam o risco de cancro, resistência â insulina e doença coronária;
- O ferro heme promove a formação de compostos N-nitrosos endógenos;
- A presença de carnitina e colina, as quais são convertidas na microbiota em TMA e em TMAO no fígado, o qual poderá ser aterogénico.
Mais recentemente tem sido sugerido que a presença de um tipo específico de ácido siálico em alimentos com origem em mamíferos (como carne vermelha e laticínios), poderá ser um fator de risco importante para o cancro colorretal (International Agency for Research on Cancer & Working Group on the Evaluation of the Carcinogenic Risks to Humans, 2018). Trata-se de um açúcar conhecido como ácido N-glicolil neuramínico (Neu5Gc), um monossacarídeo com 9 carbonos que pode ser sintetizado pela maior parte dos mamíferos (Paul & Padler-Karavani, 2018). Devido a uma mutação genética no gene CMAH que ocorreu há cerca de 2-3 milhões de anos, os humanos não conseguem sintetizar Neu5Gc (Dhar et al., 2019).
Essa mutação poderá ter tido a função de nos proteger de parasitas. No entanto, dessa forma provavelmente tornou-nos também mais vulneráveis a doenças cardiovasculares.
A inativação do CMAH resultou na impossibilidade de sintetizar Neu5Gc e num aumento do precursor, o ácido N-acetilneuramínico (Neu5Ga). O Neu5Gc é incorporado nas células e como resposta, o organismo produz anticorpos, os quais ligam-se ao Neu5Gc, havendo também um aumento da inflamação sistémica (Bardor et al., 2005; Hedlund et al., 2008).
Algumas evidências sugerem que o Neu5Gc acumula-se em tumores humanos, tais como do colon, retinoblastomas, mama e melanoma. A combinação de Neu5Gc associado a células tumorais com anticorpos anti-Neu5Gc parece promover a progressão do tumor, induzindo um processo inflamatório, causando uma infiltração de células inflamatórias e estimulando a angiogénese (Higashi et al., 1984; Bardor et al., 2005; Hedlund et al., 2008). Uma vez que todos os humanos têm anticorpos para Neu5Gc em circulação, estes entram continuamente em contacto com tecidos que contêm Neu5Gc, levando a uma condição chamada xenosialite, a qual em animais está associada a um aumento do risco de cancro e doenças cardiovasculares (Samraj et al., 2015; Hedlund et al., 2008; Kawanishi et al., 2019).
Esse mecanismo também poderá explicar a razão pela qual, embora os eventos coronários sejam extremamente raros noutros mamíferos, incluindo os nossos parentes próximos, os chipanzés, mesmo na presença de fatores de risco como dislipidémias, hipertensão e aterosclerose, no caso dos humanos esses fatores aumentarem o risco de doenças cardiovasculares. Um estudo em modelo animal mostrou que quando foi desativado o gene CMAH, tal como acontece no caso dos humanos, os animais alimentados com uma dieta rica em gordura mas sem ácido siálico tiveram um aumento 1,9 vezes superior de aterosclerose, associado a um aumento de linfócitos brancos hiperativos e aumento da glicémia (Kawanishi et al., 2019).
Quando ingerimos alimentos ricos em Neu5Gc, como a carne vermelha, essa molécula é incorporada nas células humanas e identificada como um antigénio, desencadeando uma resposta inflamatória. Nos locais onde se acumulam estas moléculas, tal como as placas de aterosclerose, existe um aumento da inflamação local, o que poderá aumentar o risco de doenças cardiovasculares e até alguns cancros. No mesmo estudo em modelo animal sem CMAH, os animais alimentados com uma dieta rica em gordura e também rica em Neu5Gc, houve um aumento 2,4 vezes superior de aterosclerose (Kawanishi et al., 2019).
Um estudo recente procurou analisar se existe uma relação entre a ingestão de alimentos ricos em Neu5Gc, os níveis de anticorpos anti-Neu5Gc e o risco de cancro. Para isso foi calculada a ingestão diária de Neu5Gc de 19621 participantes e testado os níveis de anticorpos anti-Neu5Gc em 120 desses participantes. Com base nesses dados, os investigadores criaram um índice chamado Índice Gcémico. Este índice classifica os alimentos de acordo com o aumento que provocam nos valores de anticorpos, e possivelmente no risco de cancro (Bashir et al., 2020).
Os resultados do estudo mostraram que existe uma relação entre uma ingestão elevada de Neu5Gc presente nas carnes vermelhas e laticínios e um aumento dos níveis de anticorpos anti-Neu5Gc, os quais estão associados a um risco superior de cancro. Uma vez que a ingestão de carne vermelha está associada a um risco superior de cancro, o Neu5Gc poderá ser um dos componentes responsáveis por essa associação. A utilização do Índice Gcémico poderá ajudar a diminuir o risco de cancro, reduzindo a ingestão de alimentos com um IGc elevado. O Neu5Gc encontra-se em concentrações abundantes na carne vermelha e nos laticínios, mas em pequenas quantidades nos peixes e ausente nas carnes de aves (Samraj et al., 2015; Tangvoranuntakul et al., 2003).
Referências:
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