A evolução humana não acontece de forma isolada. É na realidade totalmente dependente do meio ambiente do qual emergiu. Um dos exemplos mais claros dessa relação íntima e co-dependência biológica está bem presente nos nossos intestinos. Ao longo de milhões de anos, humanos e bactérias desenvolveram uma relação simbiótica sem a qual a nossa integridade física e biológica ficaria comprometida. Quando se quebra esta aliança orgânica inter-espécies surgem desequilíbrios metabólicos que podem manifestar-se como doenças. São cerca de 100 triliões de bactérias que existem na nossa microbiota intestinal e com as quais temos uma relação constante e dinâmica .
Cuidar das bactérias para que elas cuidem de nós, essa parece ser uma regra fundamental para a manutenção da saúde e prevenção de doenças crónicas. Em número ligeiramente superior do que as células do nosso organismo, as bactérias com as quais diplomaticamente convivemos são agentes ativos em muitos aspetos do nosso metabolismo e vários dos efeitos benéficos ou prejudiciais de certos alimentos são mediados pelos efeitos que têm sobre a microbiota. Quase todas as doenças crónicas, assim como o bom funcionamento do sistema imunitário, parecem algum tipo de relação com a composição da microbiota .
A microbiota durante os primeiros anos de vida além de ser muito maleável e sensível às condições do meio ambiente, poderá ter efeitos a longo-prazo para a saúde . A diversidade e composição interindividual da microbiota é maior nas crianças do que em adultos . Nesse sentido, modificações no ambiente que produzam alterações adaptativas na microbiota poderão ter um impacto maior e mais duradouro se forem implementadas na primeira infância.
Um exemplo disso são os efeitos na microbiota do bebé dos diferentes tipos de parto. A primeira colonização do intestino por microorganismos dá-se durante o nascimento a partir da mãe e do ambiente em volta do bebé . A aquisição e desenvolvimento da microbiota durante uma fase precoce do desenvolvimento passa por sucessivas exposições a microorganismos, as quais modificam a composição futura e função da microbiota .
Os diferentes acontecimentos durante essa fase de vida, incluindo parto por cesariana, alimentação por fórmula infantil ou toma de antibióticos, podem perturbar a composição da microbiota e estar associados ao desenvolvimento de doenças crónicas como asma, artrite juvenil, doenças inflamatórias do intestino, problemas imunitários ou mesmo leucemia . Nesse sentido, alguns estudos sugerem que a microbiota de um recém-nascido depende muito do tipo de nascimento, sendo que 20 minutos depois do nascimento a microbiota de bebés nascidos por parto normal assemelha-se à microbiota vaginal da mãe. Por outro lado, se o bebé nascer por cesariana, a sua microbiota assemelha-se à microbiota da superfície da pele humana .
De forma a perceber melhor o impacto da cesariana na composição da microbiota de um recém-nascido, um estudo recolheu 1679 amostras em diferentes momentos da microbiota de 596 bebés e 175 mães. De acordo com os resultados, os bebés nascidos por cesariana apresentaram menores concentrações de bactérias protetoras da mãe (Bacteroides) e grandes concentrações de bactérias patogénicas oportunistas presentes no ambiente hospitalar (Enterococcus, Enterobacter e Klebsiella). Estes efeitos foram também observados em menor grau em bebés nascidos por parto natural cujas mães tomaram antibióticos profiláticos durante a gestação ou que não tenham sido amamentados . As bactérias observadas nestes bebés apresentam fatores virulentos e resistência antimicrobiana, o que pode facilitar predisposição para infeções oportunistas, e que poderá explicar em parte o maior risco para os bebés nascidos por cesariana de problemas como asma, alergias e problemas imunitários. O estudo reforçou a noção de que o tipo de nascimento poderá ser determinante para o equilíbrio da microbiota do recém-nascido e que isso poderá ter implicações para a saúde do bebé e em fases posteriores do desenvolvimento .
Um estudo anterior mostrou também que bebés nascidos por cesariana não têm bactérias do grupo bacteroidetes no intestino durante 2 anos e apresentam menor diversidade. Estas crianças apresentam maior risco de alergias, asma, obesidade e síndrome do intestino irritável. Por outro lado, bebés que nasceram por parto normal apresentaram maior diversidade de bactérias além de terem mais células Th1, importantes na defesa de alergias .
Uma das razões pelas quais os bebés amamentados poderão estar mais protegidos de desequilíbrios da microbiota e por conseguinte de problemas de saúde deve-se ao facto de o leite materno ser rico em oligossacarídeos, os quais que não são digeridos pelo bebé mas servem de alimento para as bactérias do seu intestino. Ou seja, o leite contêm elementos que não servem diretamente para o bebé mas sim para as bactérias da sua microbiota, as quais exercem os seus efeitos protetores. Estes oligassacarídeos têm várias funções para o bebé :
- Promovem o crescimento de bactérias benéficas e protetoras;
- Impedem a adesão de bactérias patogénicas às células do intestino;
- Reforçam a imunidade e promovem a função da barreira intestinal.
É de tal forma importante este vínculo mãe-bebé-bactéria, que algumas das bifidobactérias presentes no intestino do bebé, especialmente a Bifidobacterium longum, adaptaram-se para metabolizar os oligossacarídeos presentes no leite materno, alguns dos quais são exclusivos e estão presentes apenas no leite humano. Como retorno, essas bactérias produzem ácido lático, o que protege o intestino do bebé de bactérias patogénicas. Humanos e bactérias evoluíram em conjunto de forma a criarem uma relação de simbiose e beneficiar ambos .
As cesarianas são em muitos momentos necessárias e salvam vidas. No entanto, tanto o parto natural como a amamentação poderão proteger o bebé ao beneficiarem a microbiota defendendo-a de bactérias patogénicas oportunistas. As fibras presentes no leite materno e depois numa dieta saudável, rica em produtos vegetais não refinados, são fundamentais para manter uma microbiota saudável.
Mais recentemente, um estudo com ratinhos mostrou que aqueles que fizeram uma dieta pouco saudável semelhante a uma dieta ocidental durante a infância, tiveram alterações na composição e diversidade da microbiota que permaneceram até a vida adulta. O estudo sugere que uma dieta ocidental durante a infância poderá ter consequências para a microbiota a longo prazo, mesmo que seja adotada uma dieta saudável mais tarde .
Outro estudo comparou a microbiota de crianças de uma vila rural em Burkina Faso com crianças saudáveis de Itália. Enquanto as primeiras têm uma dieta naturalmente rica em fibra, as últimas fazem uma dieta tipicamente ocidental, rica em gordura e açúcar. Nas crianças com uma dieta tradicional foi observado :
- Maior concentração de Bacteroidetes comparativamente com Firmicutes, com abundância de Prevotella.
- Maior diversidade da microbiota;
- Aumento na produção de ácidos gordos de cadeia curta, incluindo 4 vezes superior de butirato e propionato;
- O grupo de Burkina Faso consumia cerca do dobro da quantidade de fibra do que o grupo ocidental.
Alimentos ricos em fibras e amido resistente são os principais alimentos de bactérias benéficas e protetoras do nosso intestino. Ao fermentarem essas fibras e amidos, certas bactérias produzem substâncias como o butirato ou o acetato, as quais têm inúmeros benefícios para a saúde. O butirato é a principal fonte de energia das células do intestino e está associado a inúmeros benefícios para a saúde :
- Diminui a inflamação;
- Reforça a barreira intestinal;
- Diminui a permeabilidade intestinal;
- Reforça as junções apertadas das células do intestino;
- Aumenta a formação de mucosa intestinal;
- Aumenta o número de linfócitos T reguladores;
- Diminui o pH do intestino.
Por outro lado, dietas ricas em gordura costumam ser pobres em fibra, além de poderem afetar a permeabilidade intestinal por meio da secreção de mediadores, o que favorece a translocação de endotoxinas (lipopolissacarídeos) para a circulação . A microbiota intestinal representa um grande reservatório de endotoxinas, especialmente naqueles indivíduos que habitualmente consomem dietas com alto teor de gorduras. Essas endotoxinas induzem inflamação e resistência à insulina. Altas concentrações circulantes de endotoxinas, associadas à ingestão de dietas ricas em gorduras, podem desencadear inflamação subclínica crónica, que participa na gênese da obesidade, DM2 e outras .
Uma revisão sistemática a 6 RCTs e 9 estudos seccionais-cruzados mostrou que uma dieta rica em gordura (especialmente saturadas) está associada a uma diminuição do número, riqueza e diversidade de bactérias no intestino. Esteve também associada a um aumento das bactérias Clostridium bolteae e Blautia, as quais poderão aumentar o risco de resistência à insulina e obesidade. As gorduras poli-insaturadas não pareceram afetar negativamente a microbiota .
Uma das melhores fontes de butirato e acetato por fermentação bacteriana no intestino é o amido resistente. O amido resistente é um tipo de amido que resiste à digestão e é fermentado pela microbiota no intestino. Encontra-se presente em certos vegetais e frutos amiláceos, leguminosas, cereais integrais e frutos secos, tais como:
- Banana verde;
- Mandioca;
- Feijão branco;
- Feijão vermelho;
- Flocos de aveia crus;
- Lentilhas vermelhas;
- Caju;
- Feijão preto;
- Lentilhas.
Embora ainda não se saiba muito sobre os impactos a longo prazo da dieta na infância, tudo indica que durante este período muito do que fazemos ou não fazemos poderá ter consequências futuras. Parte dessas consequências poderão estar relacionadas com os seus efeitos na microbiota. A melhor forma de proteger a saúde futura das crianças consiste na velha máxima: é de pequenino que se come o pepino!
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