Restrição de açúcar pode aumentar longevidade e diminuir risco de cancro

Os últimos 30 anos têm assistido a várias modificações na forma como o cancro é compreendido. Desde os estudos pioneiros desenvolvidos pela AICR no início dos anos 80 que passámos a ver o cancro como uma doença prevenível e fortemente relacionada com o estilo de vida. Por outras palavras passámos a ser responsáveis pela doença e consequentemente pela solução. A hereditariedade sabemos hoje que contribui menos de 10% para o problema do cancro. Esta noção contraria uma outra ainda presente em muitas pessoas na qual o cancro surge como uma fatalidade para o qual contribui muito pouco. O facto é que o contributo para as nossas doenças recai fortemente em nós e nas nossas escolhas. Este facto reforça o nosso poder pessoal mas também a nossa responsabilidade.

Ao nível genético esta tomada de responsabilidade pelos nossos atos e as suas consequências para a saúde pode ser contemplada numa área de estudo recente chamada epigenética. Ao contrário do que se pensou até hoje, o código genétco não representa uma matriz estática e inflexivel. A expressão dos vários genes que o compõem pode ser modificada através de fatores e variáveis do meio ambiente. Além disso, essas modificações podem passar para as gerações posteriores imediatas. O que isto significa é que fatores como a dieta não alteram a natureza do ADN e a sua informação de base, mas modificam a expressão dos seus genes. Tudo se torna mais dependente de nós e do ambiente onde nos inserimos. A dieta ocupa aqui uma posição central pelo facto de ser o agente que mais diretamente interfere com esses mecanismos. O destino da nossa saúde está de novo ao nosso alcance. De facto poderíamos dizer que a Epigenética está para a Genética como a noção de Karma das filosofias orientais está para a Predestinação. A epigenética devolve ao ser humano a consciência da consequência das suas ações e escolhas. Não é incomum ouvir pessoas dizer que não há nada que possamos fazer para alterar aquilo que está já genéticamente predefinido. Essa idéia não pode ser sustentada por aquilo que se sabe hoje.

As implicações para o cancro são várias. Sendo o cancro uma doença caracterizada pelo crescimento descontrolado das células, esse crescimento surge através de mutações dos genes responsáveis pelo seu controlo. A expressão dos genes responsáveis por manter sob controlo os mecanismos de multiplicação das célulase outros mecanismo biológicos dos quais dependem as células de cancro está alterada. Já sabemos que a dieta tem uma influência nos vários processos do metabolismo relacionado com o cancro, mas o que a epigenética vem dizer é que a dieta também influencia a expressão dos genes que podem promover ou inibir o crescimento das células de cancro. Em 2010, uma das edições da revista TIME foi dedicada à epigenética com o título “Why isn’t your DNA your Destiny”. A capa era aberta com o subtítulo “A nova ciência da epigenética revela como as escolhas que fazemos podem modificar o nossos genes e os dos nosso filhos”. Ao contrário do processo de evolução proposta por Darwin, as implicações das nossas escolhas ao nível da expressão dos genes são imediatas e transferem-se para os filhos.

A equipa de investigação liderada por Trygve Tollefsbol tem feito pesquisas sobre o envelhecimento, dieta e prevenção de cancro. Tollefsbol é professor na Universidade do Alabama. A sua pesquisa tem contribuido com várias descobertas importantes no papel de certas substâncias presentes nos alimentos na prevenção do cancro através dos mecanismos epigenéticos. O seu estudo também tem permitido perceber melhor o papel dos genes relacionados com os telómeros (as extremidades do ADN dos nossos cromossomas) e a sua relação com o cancro. Numa apresentação recente na conferência anual da AICR, Trygve fez uma exposição com as conclusões recentes das suas pesquisas. Algumas substâncias e as suas propriedades epigenéticas foram apresentadas, tais como o sulforafano (fitoquímico presente nas crucíferas, em particular nos brócolos) ou os polifenóis presentes no chá verde. Todos os resultados dos estudos desenvolvidos por esta equipa mostram efeitos muitos significativos na modificação através destas substâncias da expressão de certos genes envolvidos com a ação da enzima telomerase. Ao inibir a ação desta enzima através dos genes que a regulam, é possível afetar as células de cancro, onde existe uma sobre-atividade desta enzima. Outro dos estudos apresentados mostra os benefícios da restrição calórica no envelhecimento das células.

Um dos estudos recentes desenvolvido por esta equipa buscou avaliar os efeitos de uma restrição de glicose nas células saudáveis e de cancro. O título do estudo “Glucose restriction can extend normal cell lifespan and impair precancerous cell growth through epigenetic control of hTERT and p16 expression” traduz aquilo que poderá ser um dado extremamente importante acerca do papel do controlo da glicose através da dieta na prevenção do cancro. Segundo os autores “as respostas diferentes no consumo e metabolismo da glicose, a fonte principal de calorias no corpo humano, entre células saudáveis e de cancro poderá ser um alvo promissor na prevenção e/ou tratamento do cancro”. Como sabemos, as células de cancro desenvolvem um metabolismo da glicose diferente das saudáveis. Essa modificação passou a ser conhecida pelo Efeito Warburg, resultante do cientista que a descobriu e ganhou um Nobel em 1931 (Otto Warburg). Modificações no microambiente do tumor que passam por hipóxia (ausência de oxigénio) e um pH ácido contribuem para a progressão do tumor. O que esta equipa fez foi comparar em laboratório o efeito em células saudáveis (WI-38) e células pré-cancerosas (WI-38/S) de restrição de glicose. Os resultados mostraram que a restrição aumentou a expressão do hTERT (ativado nos tumores) e diminui a expressão do p16 (inibido nos tumores), prolongando assim a proliferação e longevidade nas células saudáveis. Pelo contrário, nas células pré-cancerosas houve uma diminuição na expressão do hTERT e um aumento na expressão do p16, contribuindo assim para a sua morte por apoptose. Este estudo revela segundo os autores mecanismos epigenéticos através dos quais a restrição da glicose é capaz de modificar a expressão de certos genes levando a consequências diferentes e opostas nas células saudáveis e pré-cancerosas.

Em resumo: este estudo mostra pela primeira vez que a restrição de glicose aumenta a longevidade das células saudáveis e simultaneamente inibe o crescimento das células de cancro e induz a sua apoptose. Trygve conclui dizendo que estes resultados sugerem fortemente que uma redução calórica e de glicose na nossa dieta poderão aumentar o tempo de vida e reduzir o risco de cancro através dos efeitos desta restrição nas nossas células individuais. Compreender o conceito de restrição numa sociedade como a nossa e os seus benefícios para a longevidade será concerteza um grande desafio. E quando se trata de restringir o consumo de açúcar, numa cultura aditiva como a nossa, esse desafio torna-se realmente hercúleo. Mas afinal, como Hércules, sem realizarmos esse e outros desafios não conquistaremos a nossa imortalidade.

Um vídeo educativo que aborda a questão da epigenética:

Referências:

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2996891/

https://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1952313-1,00.html

https://www.sciencedaily.com/releases/2009/04/090412081315.htm