Alguns alimentos adquirem um estatuto simbólico e cultural que se torna difícil ultrapassar de forma a olharmos de forma objetiva para os seus reais efeitos na saúde. O vinho é um bom exemplo disso, estando tradicionalmente associado a benefícios para o coração, quando consumido moderadamente, sendo geralmente recomendado que se beba 1 a 2 copos por dia. A evidência que sustenta essa associação é, no entanto, inconsistente e estudos mais recentes e mais robustos têm mesmo vindo a contrariar essa noção.

Por exemplo, de acordo com um estudo que comparou os hábitos de consumo de bebidas alcoólicas de 599912 participantes com origem em 19 países, embora o consumo de álcool acima dos 100 g de álcool (5 bebidas) por semana tenha estado associado a uma diminuição do risco de enfarte do miocárdio, aumentou o risco de outras doenças cardiovasculares graves e muitas vezes fatais como AVC ou insuficiência cardíaca (Wood et al., 2018).

Outro estudo que incluiu 434321 participantes com idades compreendidas entre os 18 e os 85 anos mostrou que ingerir 1 a 2 bebidas quatro ou mais vezes por semana esteve associado a um risco 23% superior de mortalidade. O risco foi semelhante em todas as faixas etárias. De acordo com os resultados, o mínimo risco de mortalidade foi observado quando houve uma ingestão inferior a 3 vezes por semana. Relativamente à mortalidade por cancro o mínimo risco observou-se quando houve uma ingestão 1 vez por mês ou menos. O estudo concluiu que ingerir bebidas alcoólicas diariamente, mesmo com moderação, poderá ser prejudicial à saúde e aumentar o risco de mortalidade (Hartz et al., 2018).

De acordo com o maior e mais detalhado estudo sobre os efeitos do álcool na saúde e no risco de doença, qualquer quantidade de álcool poderá estar associado a um risco superior de doenças e mortalidade, sendo que em 2016 o consumo de álcool foi responsável por 2,8 milhões de mortes. Com base nos resultados do estudo, envolvendo 195 países e territórios, a dose recomendada para a diminuição do risco de mortalidade é zero bebidas, mesmo levando em consideração os seus efeitos protetores em relação à cardiopatia isquémica e diabetes nas mulheres. Os seus efeitos prejudiciais, nomeadamente o aumento do risco de vários cancros em qualquer quantidade, são superiores aos efeitos benéficos (, 2018).

Contrariando a crença generalizada que existe uma dose de segurança para a ingestão de álcool, abaixo da qual não só não se observam riscos para a saúde, como alegadamente existem benefícios, outro estudo prospetivo mostrou que beber álcool dentro das recomendações esteve associado a mais de 50% de todas as mortes relacionadas com álcool. O estudo concluiu que mesmo quantidades de álcool dentro das recomendações poderão ser prejudiciais. Relativamente às bebidas alcoólicas, quanto menos melhor (Sherk et al., 2020).

Um estudo recente procurou perceber a razão de existirem alguns resultados contraditórios, com alguns estudos anteriores a mostrar um efeito benéfico de uma ingestão moderada de álcool. Para isso foram acompanhados ao longo de 7 anos 333259 participantes que ingeriam álcool e 21710 participantes que nunca ingeriram álcool. Qualquer pessoa que tenha sofrido anteriormente um evento cardiovascular, assim como pessoas que tenham parado de beber álcool antes de iniciar o estudo, foram excluídos. Foram observados os seguintes resultados:

  • Entre aqueles que ingeriram menos de 14 unidades de álcool por semana – o equivalente a 140 ml ou 112 g de álcool puro, ou 10 copos pequenos de vinho – cada 852 ml adicionais de cerveja com um volume de álcool de 4% esteve associado a um risco 23% superior de um evento cardiovascular.;

Quando foram controladas as variáveis que possam criar vieses nos resultados do estudo, a ingestão de álcool, mesmo em quantidade inferiores a 14 unidades por semana, esteve associada a um risco superior de eventos cardiovasculares (Schutte et al., 2022).

Alguns estudos mostram uma curva em J relativamente aos efeitos do álcool, ou seja, um efeito protetor em quantidades moderadas. No entanto, isso deve-se a problemas metodológicos. Um desses vieses explica-se ao serem incluídos como grupo de comparação participantes que não ingerem bebidas alcoólicas, sendo que muitos destes não bebem por terem tido problemas de saúde. Nesse sentido, quando são comparadas pessoas saudáveis que bebem com outros que não bebem por problemas de saúde prévios, isso poderá criar uma falsa associação entre beber moderadamente e benefícios para a saúde.

De acordo com o autor principal do estudo, “a alegada curva em J da relação entre o consumo de álcool e as doenças cardiovasculares que sugerem que um consumo moderado de álcool está associado a benefícios para a saúde, é um dos maiores mitos desde que nos foi dito que fumar era bom para nós”. Quando se eliminam os vieses, os efeitos adversos de um consumo baixo ou moderado de álcool são revelados.

Mais recentemente, um estudo utilizou um método que permite estabelecer um nexo de causalidade mais robusto do que os estudos epidemiológicos clássicos (Biddinger et al., 2022). O método chama-se randomização mandeliana e consiste em utilizar variações genéticas entre os participantes de forma a determinar se uma associação observada é devida a um efeito causal – neste caso, se o consumo ligeiro de álcool causa uma maior proteção de doenças cardiovasculares. Uma vez que existem variações genéticas que predispõem uma pessoa a um consumo maior ou menor de álcool, e sendo essas variações de distribuição aleatória na população, as mesmas podem ser utilizadas como uma maneira de aleatorizar os participantes e diminuir assim os vieses geralmente presentes nos estudos prospetivos. O método é o que mais se aproxima de um estudo clínico aleatorizado e permitiu esclarecer as dúvidas que ainda persistem sobre os alegados benefícios de um consumo moderado de álcool. O estudo incluiu 371463 participantes com um consumo médio de 9,2 bebidas por semana. Em linha com estudos clássicos anteriores, um consumo ligeiro a moderado de álcool esteve associado a um estilo de vida mais saudável e a um risco de doença cardiovascular inferior, comparativamente com abstenção de álcool. No entanto, quando foi aplicado o método de randomização mandeliana, foram observados os seguintes resultados:

  • Embora o risco de doença cardiovascular e hipertensão seja superior entre 7 a 14 bebidas alcoólicas por semana e bastante superior entre 14 e 21 bebidas por semana, mesmo um consumo até 7 bebidas por semana está associado a um aumento desse risco;
  • O risco de doença cardiovascular aumenta mesmo com consumos considerados de baixo risco ou mesmo benéficos como 1 bebida alcoólica por dia para as mulheres e 2 bebidas para os homens

O estudo concluiu que qualquer quantidade de álcool parece estar associada a um aumento do risco de doença cardiovascular (Biddinger et al., 2022).

Outros estudos anteriores que utilizaram o mesmo método de randomização mandeliana chegaram a conclusões semelhantes (Rosoff et al., 2020Millwood et al., 2019Holmes et al., 2014). Além disso, um estudo clínico randomizado com 140 doentes de fibrilhação auricular com um consumo regular de álcool (10 ou mais bebeidas por semana) criou dois grupos: um de controlo e outro ao qual foi pedido que deixasse de beber bebidas alcoólicas. Ao fim de 6 meses os sintomas de arritmia baixaram significativamente no grupo da abstinência de álcool (Voskoboinik et al., 2020).

Relativamente ao cancro, o álcool é um fator de risco ainda mais importante, sendo que qualquer dose de álcool poderá aumentar o risco da doença. De acordo com a WCRF/AICR, a associação entre as bebidas alcoólicas e o risco de vários cancro é muito robusta, nomeadamente:

  • Bebidas alcoólicas aumentam o risco de cancro da boca, faringe, laringe, esófago e mama;
  • Duas ou mais bebidas alcoólicas por dia (30g de álcool) aumentam o risco de cancro colorretal;
  • Três ou mais bebidas alcoólicas por dia (45g de álcool) aumentam o risco de cancro do estômago e fígado.

Curiosamente, a ingestão até 2 bebidas alcoólicas por dia (30g de álcool) parece diminuir o risco de cancro renal. No entanto, levando em consideração que o conjunto dos outros cancros em que o álcool aumenta o risco é muito superior, o risco será sempre muito maior do que qualquer eventual benefício.

No caso do cancro da mama, beber o equivalente a um copo pequeno de cerveja ou vinho por dia (cerca de 10 gramas de álcool) está associado a um aumento de 5% do risco de cancro da mama pré-menopausa e 9% no caso do cancro da mama após a menopausa (uma bebida standard tem cerca de 14 gramas de álcool).

Diversos estudos e meta-análises suportam uma relação causal entre o consumo de álcool e os seguintes cancros: cavidade oral, faringe, laringe, esófago, fígado, colorretal e mama, sendo esse risco particularmente forte no caso dos cancros da boca, faringe e esófago (Connor, 2016). A ingestão de bebidas alcoólicas, mesmo em quantidades pequenas (até uma bebida por dia), pode aumentar o risco dos cancros da cavidade oral, faringe, esófago e mama (Bagnardi et al., 2013). Além disso, o risco de cancro não parece ser diferente em função do tipo de bebida alcoólica ingerida (Bongaerts et al., 2008).

Portugal é dos países com maior consumo de álcool em todo o mundo, consumindo uma média anual de 12,9 litros de álcool puro per capita (WHO, 2014), e estima-se que cerca de 19,2% de todos os cancros em Portugal sejam atribuíveis ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas (Cortez-Pinto et al., 2010). Em Portugal, pelo menos uma parte da população não concorda ou não sabe que evitar seja a melhor forma de prevenir o cancro, não acha que todas as bebidas tenham o mesmo efeito no risco de cancro e acha que o vinho tinto é protetor relativamente ao cancro.

Quando ingerimos bebidas alcoólicas, o etanol é convertido no organismo em acetaldeído, o qual pode provocar danos no ADN das células, assim como quebrar e danificar o ADN das células estaminais, o que leva a um rearranjo dos cromossomas e a uma alteração permanente das sequências de ADN nessas células. Quando células estaminais acumulam erros no ADN, podem dar origem a células de cancro (Garaycoechea et al., 2018).

O conceito de que o vinho é uma bebida saudável tem raízes na tradição, mas não na ciência. Especialmente no caso do risco de cancro, qualquer dose está associada a um aumento do risco. Mesmo em relação ao risco de doenças cardiovasculares, os estudos mais recentes e mais robustos sugerem que não exista qualquer nível de ingestão de álcool que possa ser considerado seguro. Nesse sentido, talvez seja preferível reservar as bebidas alcoólicas para momentos especiais e de exceção e não incluir na alimentação de forma regular, mesmo dentro das recomendações tradicionais. Recomendações essas que à luz dos novos dados podem vir a ser alteradas.

Referências:

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