“E que se alongue a labuta da vida, tanto eu o consiga: e que a morte me encontre a plantar as minhas couves.”

Michel Eyquem de Montaigne (1595)

Num tempo e num espaço onde a exposição a agentes tóxicos e potencialmente carcinogénicos é inevitável, convém criarmos formas de nos precavermos e de minimizarmos os seus efeitos. Os últimos 100 anos correspondem a um aumento exponencial de susbstâncias em circulação no ambiente, no ar, na água e nos alimentos aos quais o organismo humano nunca antes esteve exposto em tão grandes concentrações. Os efeitos a longo prazo de tão grande experiência coletiva são ainda desconhecidos, mas podemos já desconfiar que o desfecho não seja o mais favorável para o equilíbrio dos nossos organismos. Cem anos representam muito pouco tempo para ajustarmos os nossos corpos a um ambiente tão tóxico. São já mais de 100 as substâncias ambientais identificadas pela Agência Internacional para a Pesquisa do Cancro (IARC) e pelo US National Toxicology Program como carcinogénicas. A IARC dividiu as substâncias avaliadas em 5 grupos:

Grupo 1 Cancerígeno para humanos 108 agentes
Grupo 2A Provavelmente cancerígeno para humanos   64
Grupo 2B Possivelmente cancerígeno para humanos 272
Grupo 3 Sem classificação possível 508
Grupo 4 Provavelmente não cancerígeno para humanos      1

Uma substância cancerígena é caracterizada pela sua capacidade de poder danificar o ADN da célula, o que pode levar à manifestação de cancro. Essas substâncias podem afetar o ADN de forma direta ou indireta. Por exemplo, estas podem promover a divisão celular levando-as a dividirem-se de forma mais rápida, o que pode aumentar as possibilidades de ocorrer uma mutação do ADN. As substâncias cancerígenas não causam cancro em todos os casos e todo o tempo. Algumas podem causar cancro apenas depois de uma exposição prolongada e em grandes concentrações, outras não precisam de tanto tempo ou concentração para fazerem dano.

Uma vez que se torna praticamente impossível eliminar os fatores de risco ambientais com o potencial de causar cancro, precisamos encontrar outras formas de nos defendermos. O nosso organismo está munido de vários mecanismos de proteção e desintoxicação. Um grupo específico de enzimas, chamadas de Fase II, são produzidas com o papel de evitar a exposição do ADN a substâncias potencialmente cancerígenas, promovendo a sua eliminação do corpo. Algumas moléculas presentes em certos alimentos (em particular os legumes crucíferos) têm a capacidade de induzir e aumentar a sua produção e eficácia. Alguns estudos mostram como o consumo de germinados de brócolos (ricos em isotiocianatos) aumentam a concentração destas enzimas no sangue, diminuindo assim a quantidade de substâncias potencialmente cancerígenas em circulação.

Um artigo publicado no mês passado na revista científica Topics in Current Chemistry avalia a forma como um fitoquímico presente nos brócolos pode oferecer proteção contra estas substâncias carcinogénicas ambientais. Os autores do artigo estão entre os melhores especialistas em cancro, fitoquímica e toxicologia. Um destes cientistas é o Paul Talalay, da John Hopkins School of Medicine, conhecido por nos anos 90 ter descoberto as propriedades anticancerígenas do sulforafano presente nas crucíferas. Esta equipa, numa série de estudos clínicos realizados na China, descobriram que o sulforafano poderia proteger-nos de toxinas presentes no ar ou na alimentação ativando as vias celulares que regulam a capacidade das células de se protegerem de agressões ambientais. Os fitoquímicos presentes nas plantas, têm sido amplamente reconhecidos como sendo muito eficazes em interferir com inúmeros mecanismos biológicos capazes de reduzir o risco de cancro e ajudar a controlá-lo. Na natureza, estas moléculas têm um papel semelhante ao protegerem as plantas das agressões do ambiente, tais como as bactérias, os fungos, as infeções, os predadores ou a radiação. Um desses fitoquímicos tem atraído muito a atenção dos investigadores nos últimos 20 anos por ser particularmente multi-eficaz na proteção contra o cancro. O sulforafano é o produto final de uma reação química entre dois químicos presentes nos brócolos e outros vegetais crucíferos (couves). Pertence à família dos isotiocianatos os quais contêm na sua estrutura um átomo de enxofre. Estas substâncias são produzidas a partir de outras chamadas glucosinolatos. Quando um glucosinolato reage com uma enzima chamada mirosinase, presente num compartimento diferente da célula vegetal, dá-se a formação de vários isotiocianatos e indóis específicos consoante o glucosinolato. Quando cortamos, esmagamos ou mastigamos um vegetal crucífero, a célula vegetal quebra-se fazendo com que o glucosinolato (glucorafanina) entre em contacto com a mirosinase que o transforma em sulforafano.

O sulforafano apresenta várias propriedades importantes na proteção contra o cancro tais como: a indução das enzimas de fase II, indução da apoptose, interrupção do ciclo celular, inibição da angiogénese e propriedades anti-inflamatórias. Neste caso, os investigadores concentraram-se em perceber como o sulforafano ativa uma proteína protetora da célula chamada Nrf2 (pronunciada nerf 2). Dessa forma o sulforafano induz os sistemas de defesa antioxidantes da célula e a apoptose. A Nrf2 está amarrada a outra proteína chamada Keap1. As duas proteínas mantêm-se juntas no citoplasma da célula. No núcleo, existe uma região do ADN que contém genes que protegem as células do dano causado pelas toxinas cancerígenas. Um destes genes induz a produção de uma poderosa enzima que protege o p53, um antioncogene geralmente mutante em vários cancros. Outros genes são também responsáveis por ativar enzimas que servem como antioxidantes. A Nrf2 é o elo de ligação que permite a ativação destes genes. Mas esta proteína só pode ativá-los se se desligar da Keap1, à qual está amarrada. O sulforafano provoca a separação destas duas proteínas (pode-se dizer que provoca um “bom divórcio”), de forma a permitir a Nrf2 viajar livremente para o núcleo e ativar assim os mecanismos protetores regulados pelos genes referidos. Um dos autores do estudo, Jed Fahey afirma que “o sulforafano presente nos brócolos é um dos mais poderosos indutores da sinalização do Nrf2”, o que por outras palavras e acrescentanto todas as outras propriedades associadas a este fitoquímico, significa que por muitos motivos e de muitas formas diferentes, as crucíferas, nomeadamente os brócolos, são dos alimentos mais eficazes na prevenção e luta contra o cancro.

O artigo conclui dizendo que “alimentos completos ou extratos simples (destas substâncias) oferecem perspectivas de poderem reduzir um fardo global em crescimento de forma eficaz e com custos mínimos, em contraste com a utilização de fitoquímicos isolados ou medicamentos”.

Referências:

https://www.springerlink.com/content/h7564516968t8744/fulltext.html

https://www.cancer.org/Cancer/CancerCauses/OtherCarcinogens/GeneralInformationaboutCarcinogens/known-and-probable-human-carcinogens

https://monographs.iarc.fr/ENG/Classification/index.php

https://ntp.niehs.nih.gov/

https://lpi.oregonstate.edu/infocenter/phytochemicals/isothio/

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/7554064?dopt=Abstract

https://www.jhu.edu/jhumag/0408web/talalay.html

https://www.springerlink.com/content/b2745u32m0673705/