Na Grécia Antiga, a Medicina era praticada nos templos dedicados aos deus Asclepius. Este deus da Medicina tinha cinco filhas, cada uma representando uma faceta específica da Arte de Curar. Um médico deveria por isso respeitar cada uma dessas divindades, integrando-a na sua prática, de forma a realizar a sua função terapêutica de forma completa. Uma dessas filhas chamava-se Higeia e simbolizava o saneamento, a prevenção e a manutenção da saúde. Era representada por uma mulher de túnica com uma serpente enrolada ao corpo alimentando-se de uma taça que segurava na mão. Já nesse tempo se percebia a importância do estilo de vida para a saúde. Nos dias de hoje nem sempre essa consciência está presente nas nossas mentes e em particular nos profissionais de saúde aos quais nos dirigimos na esperança de resolver ou tratar uma doença. Haverá um tempo, quiçá, no qual nos dirigimos ao médico não para tratarmos a doença, mas para não chegarmos a tê-la. Se assim fosse, entraríamos no domínio de Higeia e teríamos uma medicina pro-ativa do século XXI. Afinal estamos num século onde as doenças infeto-contagiosas estão relativamente sob controlo, mas as doenças crónicas e degenerativas continuam a atormentar as nossas vidas, sem grandes conquistas significativas naquilo que deveria ser a principal motivação para as enfrentar: evitar tê-las. E se é certo que hoje sabemos que a grande maioria dos fatores de risco associados a estas doenças são fatores externos, controláveis, o facto é que ainda habita o imaginário coletivo uma ideia de que o cancro é uma doença de origem indeterminada para a qual contribuimos muito pouco para a sua génese. Mas afinal o que sabemos hoje sobre as causas principais desta doença?

O consenso generalizado da relação entre a dieta e o risco de cancro, baseado no acumular em crescimento de um corpo sólido de evidências científicas, emergiu inicialmente no início dos anos 80. Em 1982, o National Research Council nos EUA publicava um relatório onde concluía que “é abundantemente claro que a incidência de todos os cancros comuns nos humanos é determinado por vários fatores externos controláveis. Este é seguramente o facto mais reconfortante que advém da pesquisa sobre o cancro, porque significa que o cancro é, em larga medida, uma doença prevenível”. Um ano antes, os autores de um estudo seminal concluem: “É altamente provável que os Estados Unidos terão eventualmente a opção de adoptar uma dieta que reduza a incidência de cancro em aproximadamente um terço, e é absolutamente certo que outro terço poderia ser prevenido abolindo o tabagismo”. Estes estudos iriam lançar o percurso de investigação em torno da relação entre dieta e cancro, sendo que desde então as evidências acumulam-se, fortalecendo a ideia de que o cancro é essencialmente uma doença relacionada com o estilo de vida. Os anos 90 seriam impulsionados pelo primeiro relatório da WCRF/AICR no qual o painel afirmava que “está hoje estabelecido que o cancro é principalmente causado por fatores ambientais, dos quais os mais importantes são: o tabaco; a dieta e fatores relacionados com a dieta, incluindo a massa corporal e a atividade física; e exposição por motivos profissionais e outros”. Hoje este relatório vai na sua segunda edição, acrescentado novos dados e fatores de risco associados a cancros específicos e estimando uma média de 30 a 40% de cancros evitáveis através de uma dieta apropriada e exercício físico. De toda a informação acumulada neste documento, o painel resumiu esse conhecimento em 10 recomendações que caso fossem seguidas evitariam 40% de todos os cancros:

Quando se fala numa média de 40% de cancros que poderiam ser evitados através da alimentação e exercício físico significa que alguns cancros, segundo o conhecimento atualmente disponível, podem estar associados a uma percentagem superior ou inferior a esse valor. Alguns cancros, como o do endométrio, podem chegar a ter 70% de casos relacionados com estes fatores de risco. O cancro colo-retal, por exemplo, estima-se que caso se reduzisse o consumo de carne vermelha e processada e se aumentasse o consumo de fibras (2 dos principais fatores de risco associados à doença), 50% de todos os casos pudessem ser evitados.

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Traduzindo em números, de acordo com o que hoje se sabe, modificando alguns hábitos relacionados com a alimentação e exercício físico, dos cerca de 12 milhões de casos anuais de cancro em todo o mundo, 4 milhões poderiam ter evitado a doença. Se juntarmos a estas estatísticas outra fatia de 30% de todos os cancros associados ao consumo de tabaco, ficamos com um número ainda mais significativo de cancros evitáveis. Na realidade, quase a totalidade de todos os cancros dependem de fatores ambientais externos que podem ser controlados por nós. No entanto, esta informação chega de forma no mínimo insuficiente ao público, tornando-o assim extremamente vulnerável perante uma doença que segundo as estatísticas atuais atingirá cerca de 1 em cada 3 mulheres e de 1 em cada 2 homens até ao final das suas vidas.

Os desafios de uma correta comunicação à população geral no que diz respeito à prevenção do cancro foi um dos temas do último congresso organizado pela Sociedade Europeia para a Oncologia Médica (ESMO) em Viena. No congresso foram apresentados estudos que realçam os desafios de se ultrapassar o desconhecimento generalizado acerca da importância que os fatores relacionados com estilo de vida têm na redução do risco de cancro. “Estes estudos realçam o facto de que uma grande parte da população europeia não gosta em particular da ideia de ‘auto-responsabilidade’ para a prevenção individual de cancro, ou seja, alterar os seus hábitos e estilo de vida. Em vez disso culpamos a genética e a sociedade por contrairmos cancro“, diz o Prof. Hans-Jorg Senn, Diretor da Faculdade de Prevenção de Cancro da ESMO.

É de facto um desafio imposto a cada um de nós individualmente percebermos como as nossas decisões pessoais quotidianas podem ser responsáveis pelos números alarmantes de cancro nas nossas sociedades. Não é fácil encaixar esse pesado fardo de sermos os principais atores deste drama coletivo de saúde pública. Somos responsáveis. A boa notícia associada a esta constatação é que também depende de nós contribuirmos para a resolução do problema. O poder pessoal e a responsabilidade andam sempre de mãos dadas. E a responsabilidade neste caso vai para lá de uma responsabilidade de consequências individuais. Trata-se igualmente de uma questão de consciência social com consequências para toda sociedade. “A tomada de consciência da importância de prevenção primária do cancro é um enorme assunto de política de saúde para o futuro.” diz o Prof. Senn. “Se não nos tornamos mais bem-sucedidos a de forma significativa reduzir a incidência dos principais tipos de cancro, tais como os gastrointestinais e o da mama, acabaremos por de forma drástica aumentar os encargos financeiros com tratamentos, além do sofrimento humano implicado”.

Segundo um estudo recente, apresentado no Congresso ESMO 2012 de Viena, muitas pessoas estão muito mal-informadas acerca da importância que o estilo de vida tem a aumentar o risco de se desenvolver cancro. De acordo com um dos autores do estudo, o Dr. Derek Power, oncologista no Mercy and Cork University Hospitals, na Irlanda, uma grande parte da população dá uma importância exagerada ao papel da genética no cancro. Por outro lado, muitos subestimam o papel da obesidade e do álcool. A equipa do Dr. Power usou um questionário de 48 items para avaliar o conhecimento sobre os fatores de risco de cancro entre a população. 748 pessoas participaram, incluindo 126 profissionais de saúde. “Em termos gerais, 90% das pessoas, incluindo os profissionais de saúde, acreditam que os fatores genéticos aumentam ‘fortemente’ o risco (de cancro)”, afirma o Dr. Power. “Mais de 1 em cada 4 pessoas acreditam que 50% de todos os cancros são genéticos. Incrivelmente 15% das pessoas inquiridas acreditam que o risco de cancro ao longo da vida não é modificável”. Se queremos diminuir a incidência de cancros, estes mal-entendidos devem ser resolvidos, acrescenta o médico. E continua: “Este desconhecimento precisa de ser uma prioridade e resolvida através de campanhas de promoção de saúde, enfatizando-se que a dieta e o estilo de vida incluindo o tabagismo estão na origem de cerca de 90 a 95% de todos os cancros. Apenas cerca de 5 a 8% dos cancros, dependendo do local do cancro, estão relacionados com um gene herdado.”

Einstein desabafava a certa altura: “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito“. A verdadeira batalha ao cancro é antes de mais travada dentro de nós, nas nossas incorretas representações da doença e da forma como os nossos hábitos contribuem para esta e outras doenças. Vivemos num tempo que rapidamente deveremos resgatar a imagem de uma Higeia para a nossa prática de vida e de consultório. De tudo aquilo que hoje se sabe, resta ficarmos todos bem cientes que o cancro é uma doença de estilo de vida, por isso em larga medida evitável! Alterarmos os fatores que podem contribuir para a doença é uma questão de responsabilidade pessoal e coletiva. Ao nível das campanhas de saúde públicas existe claramente uma iniciativa deficiente, o que não se justifica assim ser, a não ser por pura negligência. Afinal, num tempo onde a palavra de ordem parece ser a contenção de custos, reduzir a incidência de cancro corresponde a também a reduzir os enormes gastos e desgastes com a doença. Enquanto não houver esta vontade política, podemos pelo menos nós, cidadãos informados, fazer a diferença e dar o exemplo.

Referências:

https://www.esmo.org/no_cache/view-news.html?tx_ttnews%5Btt_news%5D=1627&tx_ttnews%5BbackPid%5D=585&cHash=f2ddb9c10a

https://www.asco.org/ASCOv2/Meetings/Abstracts?&vmview=abst_detail_view&confID=114&abstractID=99589

https://www.dietandcancerreport.org/

https://www.nap.edu/openbook.php?record_id=371&page=R1

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/7017215