As células de cancro são especialistas na arte da sobrevivência e da exploração de todos os recursos naturais do organismo em seu próprio proveito. Inúmeros destes mecanismos são desviados para os seus interesses “individuais” pervertendo de certa maneira o princípio básico do equilíbrio orgânico, no qual cada célula ocupa uma função bem determinada e orientada para o bem comum. Dependente que estão de recursos orgânicos para a as suas grandes exigências energéticas, isso significa que deverão garantir um contributo permanente de moléculas e substâncias que sustentem o seu objetivo de crescimento e invasão. A inflamação, sendo um mecanismo natural do organismo para se defender de uma eventual infeção e reparar tecidos danificados, representa essa oportunidade para as ambiciosas células de cancro.

A inflamação é uma resposta do sistema imunológico quando existe uma infeção, irritação ou lesão dos tecidos. Trata-se de um evento localizado e transitório. Este fenómeno é essencial para a integridade do organismo, sem ele ficaríamos  mercê de inúmeros agentes patógenos presentes no ambiente. O problema surge quando a inflamação se torna demasiado intensa ou quando occorre durante muito tempo, tornando-se de natureza crónica. Durante o processo inflamatório, uma hoste de substâncias químicas com variadas funções são produzidas no local no sentido de impedir alguma infeção e promover a reparação dos tecidos lesados. Um tipo especial de glóbulos brancos, os macrófagos, são atraídos para o local e libertam moléculas muito reativas, responsáveis pela vermelhidão associada à inflamação, com o objetivo de eliminar possíveis agentes patógenos que tentem invadir o organismo. Por outro lado segregam fatores de crescimento que promovem o desenvolvimento dos tecidos e a formação de novos vasos sanguíneos. Além disso, estas substâncias transmissoras tornam o tecido circundante permeável para permitir uma circulação facilitada às células imunitárias. São todos estes fatores que podem criar um ambiente favorável ao crescimento de tumores, particularmente se no tecido inflamado existirem micro-tumores, os quais oportunamente poderão explorar estes mecanismos em seu proveito.

Pelo menos cerca de 18% de todos cancros estão associados a infeções e os respetivos processos inflamatórios. Na maior parte destes cancros, mais comuns em países com baixos rendimentos, o agente responsável é de origem viral, tais como o vírus do papiloma humano, HIV, vírus da hepatite, vírus Epstein Barr, entre outros. Outros microorganismos tais como a bactéria Helicobacter pylori, associada a um maior risco de cancro do estômago, estão também associados a um maior risco de alguns cancros através dos processos inflamatórios correspondentes.

A inflamação crónica é igualmente afetada por fatores relacionados com alimentação e estilo de vida. A dieta ocupa um papel central e determinante para a gestão dos níveis inflamatórios no organismo. O consumo excessivo de alimentos processados, de índice glicémico elevado, com gorduras prejudiciais (saturadas e hidrogenadas) associado a uma ausência de alimentos de origem vegetal, ricos em moléculas anti-inflamatórias e gorduras saudáveis, traduz-se por uma ambiente orgânico pró-inflamatório com as respetivas consequências para a saúde.

Os mecanismos através dos quais a inflamação contribui para a progressão do cancro são vários e complexos, não se conhecendo ainda a totalidade dos processos envolvidos. Recentemente, um estudo pela primeira vez identificou uma relação direta entre uma das substâncias presentes nos processos inflamatórios e a origem de um cancro, neste caso a leucemia. Trata-se da interleucina-15, uma substância produzida pelo organismo para promover a inflamação através do estímulo ao desenvolvimento, sobrevivência e proliferação das células exterminadoras naturais (natural killer cells), células imunitárias responsáveis por destruir células de cancro ou infetadas por vírus.

O que o estudo em modelo animal mostra é que níveis elevados desta substância (IL-15) pode causar leucemia linfocítica granular, um tipo de cancro raro e muito agressivo, normalmente fatal. De acordo com o estudo, os doentes deste tipo de leucemia apresentam níveis igualmente elevados de interleucina-15 e que causa alterações celulares semelhantes aos observados em animais. Foi observado que quando a IL-15 está presente em quantidades elevadas no organismo por períodos prolongados, tal como durante a inflamação crónica, pode fazer com que certas células do sistema imunológico conhecidas por linfócitos granulares grandes se tornem cancerosas. Esta transformação maligna acontece quando a IL-15 se liga a recetores na superfície de linfócitos granulares grandes saudáveis, o que leva a um aumento na produção dentro das células de uma proteína capaz de causar cancro conhecida por Myc. Os níveis elevados desta proteína causam instabilidade do cromossoma e mutações genéticas adicionais, além de ativarem um processo chamado metilação do ADN, o qual destiva uma série de genes, incluindo genes importantes que normalmente inibem o crescimento do cancro. As descobertas principais deste estudo são assim resumidas:

  • A exposição de linfócitos granulares grandes à interleucina-15 causou proliferação das células, instabilidade do cromossoma e hipermetilação do ADN;
  • Excesso de IL-15 ativou o oncogene Myc em linfócitos granulares grandes, levando a instabilidade genética, hipermetilação do ADN e tranformação maligna;
  • Detalhes de como a ativação do Myc causa instabilidade genética e hipermetilação.

A partir desta observação os investigadores desenvolveram um tratamento que poderá ser eficaz neste tipo de cancro. “Nós temos melhores chances de curar um cancro quando conhecemos as suas causas”, diz um dos autores Anjali Mishra. “Assim que entendemos como esta molécula inflamatória causa esta leucemia, usámos essa informação para desenvolver um tratamento que interfere com esse processo”. Os investigadores desenvolveram um inibidor que bloqueia a via bioquímica presente neste mecanismo. Os ratos com este tipo de leucemia tratados com este produto tiveram uma taxa de sobrevivência aos 130 dias de 100% contra 100% de mortalidade aos 60 dias em animais de controlo, sem ter apresentado nenhum efeito secundário assinalável. Fazem agora planos para desenvolverem este produto para uso clínico.

Enquanto este produtos não estão disponíveis podemos controlar os mecanismos inflamatórios através da dieta. Alguns alimentos e nutrientes pró-inflamatórios:

  • Gorduras saturadas (de origem animal) e hidrogenadas: vários estudos epidemiológicos mostram haver uma relação entre o consumo destas gorduras e um aumento dos marcadores de inflamação. Segundo um destes estudos, existe uma relação mais acentuada entre níveis superiores de inflamação e o consumo de alimentos como carnes vermelhas e processadas, produtos lácteos gordos e batatas fritas.
  • Hidratos de carbono simples: o consumo de alimentos de índice glicémico elevado (quando consumidos aumentam rapidamente os níveis de açucar no sangue) pode levar a uma hiperglicémia, a qual causa inflamação através da produção de radicais livres e citoquinas pro-inflamatórias. O consumo de açúcar e farinhas refinadas estão associados a um aumentos dos marcadores de inflamação.
  • Colesterol: uma dieta rica em colesterol, como o que se encontro nos ovos, está associada a um aumento dos níveis inflamatórios. Por outro lado, uma dieta pobre em colesterol diminui os marcadores de inflamação.
  • Obesidade: a obesidade está associada a níveis elevados de inflamação crónica.

A dieta ocidental é caracterizada por um excesso de consumo de alimentos como os acima referidos e um consumo deficiente de alimentos de natureza anti-inflamatória. Alguns exemplos:

  • Flavonóides: os flavonóides são fitoquímicos presentes em vários vegetais e frutos. Alguns estudos mostram que certos flavonóides têm propriedades anti-inflamatórias. Alguns exemplos: quercetina (cebolas amarelas e maçãs), genisteína (soja), catequinas (chá verde), apigenina (salsa, aipo).
  • Aminoácidos: o consumo de arginina está associado a índices de inflamação inferiores. Os frutos secos, em particular os amendoins, são ricos neste aminoácido.
  • Carotenóides: os carotenóides são fitoquímicos responsáveis pela cor vermelha, laranja e amarela de vários vegetais e frutos. Um estudo mostrou propriedades anti-inflamatórias através da inibição do fator NF-kB. Alimentos ricos em beta-caroteno são por exemplo as cenouras, a abóbora ou os brócolos. Outro carotenóide, o licopeno, presente em alimentos como o tomate ou a melancia, também apresenta uma atividade anti-inflamatória em alguns estudos.
  • Especiarias: alguns fitoquímicos presentes nas especiarias são poderosos anti-inflamatórios. Alguns exemplos: a curcumina, presente no açafrão-das-índias é um poderoso anti-inflamatório. Para ser biodisponível deve ser consumido em conjunto com a pimenta-preta. O gengibre, da mesma família, apresenta igualmente propriedades anti-inflamatórias. Outro alimento com ação anti-inflamatória é o alho.

O equilíbrio entre os ácidos gordos ómega-3 e ómega-6 através da dieta é fundamental para se assegurar um controlo adequado dos processos inflamatórios. Um excesso de ómegas-6 e deficiência de ómegas-3 cria condições para uma ambiente pro-inflamatório. O ideal é que se consiga uma relação de 1:1 no consumo de alimentos ricos nestes dois ácidos-gordos. Estima-se que atualmente a nossa dieta ocidental comum contribua para uma relação entre ómegas-6 e ómegas-3 de 20-30:1, ou seja consumimos de 20 a 30 vezes mais ómegas-6 do que ómegas-3. Alguns exemplos de alimentos ricos nestes componentes:

Ómega-6

  • Óleo de girassol
  • Sementes de girassol
  • Óleo de milho
  • Óleo de soja
  • Óleo de sésamo
  • Carnes e ovos (de animais alimentados a ração)

Ómega-3 (ALA)

  • Sementes e óleo de linhaça
  • Sementes de cânhamo
  • Sementes de chia
  • Nozes
  • Beldroegas

Para que se consiga um equilíbrio entre estes dois ácidos-gordos devemos conciliar um aumento de ómegas-3 com uma diminuição no consumo de ómegas-6, de forma a prevenirmos um ambiente orgânico cronicamente inflamatório. Por vezes pode ser útil uma suplementação extra de ómegas-3, uma vez que a conversão de ALA (na sua forma vegetal, de cadeia curta) para EPA e DHA é relativamente baixa.

Referências:

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