É de pequenino que se come o pepino! Implicações da dieta infantil no risco de cancro em adulto

prato de comida tem uma ação poderosa sobre o comportamento humano. Enquanto símbolo, está profundamente enraizado nas suas memórias mais profundas e primitivas de vida. No nosso inconsciente, o conjunto de estímulos presentes numa refeição, quer sejam olfativas, visuais ou de paladar, despertam associações profundas com figuras de proteção ou segurança, como a mãe ou o pai. Existe um vínculo indelével e indissociável entre o alimento e a experiência de figuras paternas. Mexer nessas referências, que se traduzem em gostos e preferências alimentares, representa tocar no que de mais sensível existe em nós e na nossa mais primordial sensação de segurança existencial. Daí que mudar hábitos implica interferir com a nossa identidade e sensação de segurança emocional. Talvez isso explique em parte a resistência ou mesmo violência com que costumamos reagir quando nos convidam a alterar hábitos.

O facto é que a mesa e a refeição têm sido palco ao longo da história de muitos acontecimentos importantes. Quantas decisões com consequências sociais não terão sido tomadas à mesa? Quantos relacionamentos terão começado e terminado numa refeição? Religiões fizeram-se em torno de ceias. Filosofia era feita a acompanhar os banquetes que reuniam filósofos na Grécia Antiga. Filosofia esta, que quando definida por Pitágoras, quem cunhou essa palavra, representava estilo de vida e deveria refletir-se nas escolhas diárias, em particular sobre a alimentação.

Os últimos 60 anos, depois de um traumático pós-guerra, têm sido vividos como se “não houvesse um amanhã”. Talvez isso tenha surgido como uma ânsia de viver sem as restrições que tinham sido sentidas nas décadas anteriores, ou como uma espécie de niilismo desperançado de um qualquer sentido para a existência, fruto das crises existenciais de um século marcado pela profecia de vazio de significado, tal como anunciado por Nietzsche. Mas o facto é que, em particular com as nossas dietas, passámos a viver em modo de “não-quero-saber-o-que-acontece-depois”, ou seja, sem querer olhar as verdadeiras implicações e consequências futuras dos nossos atos e escolhas.

Vivemos num tempo em que a sociedade de forma gritante devolve-nos o resultado de todas as nossas ações. Sistemas financeiros que colapsam, modelos sociais que fracassam, e cenários de saúde pública preocupantes. Vivemos por isso um daqueles períodos de oportunidade (vulgo crise) onde podemos ficar mais conscientes sobre as consequências do que fazemos ou deixamos de fazer. Crescemos, portanto. No que diz respeito à alimentação e à importância que esta atividade tem para nós individual e coletivamente, precisamos rapidamente fazer atualizações na forma como a conduzimos.

Sabemos hoje que as causas hereditárias do cancro não ultrapassam os 8 a 10%. Isto significa que 90 a 95% de todos os cancros estão relacionados com fatores que podemos modificar – são por isso evitáveis. Desses 95%, pelo menos 30 a 40% estão relacionados com dieta e exercício físico. Na realidade, poderíamos dizer que a totalidade de todos estes cancros acabam por ser de uma certa forma hereditários, uma vez que grande parte dos hábitos relacionados com estilo de vida são adquiridos durante a infância. Mesmo que eu não receba um gene defeituoso responsável pelo aumento de risco de algum cancro, acabo por receber um sem-número de genes culturais (educação) defeituosos que me impelem às escolhas de risco.

De uma forma ou de outra, é na infância que se encontra a génese da maior parte dos problemas de saúde e em particular do cancro. Digo de uma forma ou de outra porque caso houvesse falta de evidências das consequências de uma dieta nutricionalmente pobre e rica em calorias (leia-se dieta ocidental) durante a infância, haveria concerteza uma relação indireta, através das escolhas feitas em idade adulta condicionadas por essa infância. Mas não seria necessário um grande exercício de bom-senso para imaginar que se um alimento aumenta o risco de cancro em adultos, que também o faça (e talvez mais) em crianças. Tudo indica que sim.

Nós enquanto pais temos uma dupla-responsabilidade perante os nossos filhos no que diz respeito à herança que lhes deixamos. Ao expormos as crianças a uma nutrição saudável e rica em fitonutrientes estamos a promover a sua saúde física presente e futura e além disso estamos também a promover a saúde mental ao criarmos hábitos saudáveis para os futuros adultos. Alguns dos números que temos hoje no que diz respeito a saúde pública são alarmantes. Para já, sabemos que 1 em cada 2 homens e 1 em cada 3 mulheres terão cancro até ao final das suas vidas. Por outro lado, pela primeira vez em mais de 200 anos, a geração de crianças nascidas depois de 2000 poderá viver menos do que os seus pais. O relatório atribui essa previsão ao facto de termos uma epidemia de obesidade infantil generalizada, o que aumenta o risco de várias doenças, nas quais se inclui o cancro.

dieta infantil distanciou-se progressivamente de um consumo de alimentos quimiopreventivos e ricos em nutrientes e passou a estar centrada em alimentos pobres em nutrientes, particularmente os micronutrientes, e com excesso de calorias. De facto, a maioria das crianças dos países desenvolvidos come menos de 2% da sua dieta em alimentos de origem vegetal, tal como frutos e legumes. Segundo um estudo no qual se observaram mais de 3000 crianças com idades compreendidas entre os 4 e os 24 meses, 18 a 33% das crianças não consumiam vegetais e 23 a 33% não consumiam frutos. Um dos vegetais mais consumidos nas crianças entre os 9 e os 11 meses eram batatas fritas (!), as quais tornavam-se o alimento vegetal mais consumido aos 15 meses de idade. Não será difícil compreender que numa altura em que o organismo é mais vulnerável às substâncias prejudiciais presentes em alimentos como batatas fritas ou salsichas, o seu consumo e a quase inexistência significativa de alimentos vegetais ricos em substâncias capazes de proteger o ADN das células e promover a saúde de variadas maneiras, tenha consequências.

Vários estudos contribuem para a compreensão da importância da dieta na infância para problemas que surgem muitos anos depois. Um estudo desenvolvido ao longo de 60 anos do qual participaram 4999 voluntários, chegou à conclusão que aqueles que consumiram mais frutos durante a infância tinham 38% menos probabilidades de desenvolver cancro em adultos. Um outro estudo baseado na mesma amostra de sujeitos também conclui que o consumo de leite na infância pode aumentar em 3 vezes as probabilidades de cancro colo-retal em idade adulta. Uma das possíveis explicações dos mecanismos biológicos para isso, poderá ter a ver com o facto do consumo de laticínios ser acompanhado de um aumento dos níveis do fator de crescimento IGF-1. Esta substância promove o crescimento dos tecidos e a sua circulação elevada no organismo está associada a um risco superior de vários cancros através da inibição da apoptose, proliferação elevada das células e promoção da angiogénese.

Ainda a partir do mesmo grupo de sujeitos estudados, outro estudo sugere que uma dieta hipercalórica na infância aumenta o risco de cancro em idade adulta. Esta relação entre excesso de calorias, o que caracteriza a nossa dieta padrão, e o cancro, está em concordância com os estudos feitos em animais nos quais se observa que restrição de calorias está associada a uma incidência inferior de cancros. O estudo conclui que estas evidências para os efeitos a longo prazo da dieta infantil confirmam a importância de uma nutrição de qualidade na infância e sugerem que a grande incidência de cancros que temos pode ter origem nos primeiros anos de vida.

Uma análise recente de vários estudos epidemiológicos sugere que fatores como a dieta, o índice de massa corporal e o exercício físico durante a infância modificam o risco de vários tipos de cancro, tais como o cancro da mama, do ovário, do endométrio, renal e do colon. Em relação ao cancro da mama, por exemplo, vários estudos apontam para a importância da alimentação na infância para a prevenção em idade adulta:

  • Os fitoestrogénios presentes em alimentos como a soja, sementes de linhaça, cereais, frutos secos, frutos e vegetais, poderão reduzir o risco de cancro da mama quando consumidos durante a adolescênciaEstudos sugerem que consumir soja durante a adolescência poderá diminuir até 50% o risco de cancro da mama em adulto. Esse risco é menor quando o consumo de soja é alto durante a adolescência e a idade adulta, conclui outro estudo. A proteção é menor quando a soja é consumida mais tarde.
  • Consumir na infância carne vermelhamanteigabatatas fritas e uma dieta com um índice glicémico elevado, todos esses fatores parecem aumentar o risco de cancro da mama no futuro. Por outro lado, segundo os mesmo estudos, o consumo de vegetais, frutos e fibra parecem estar associados a uma diminuição de risco de cancro da mama.

Um outro exemplo do papel da alimentação na infância em cancros futuros encontra-se num estudo ao cancro nasofaríngeo. Este cancro ocorre predominantemente em populações que consomem produtos muito salgados e alimentos conservados. Peixe conservado em sal, carnes processadas e alimentos conservados  contêm nitritos e nitrosaminas, uma substância cancerígena. O estudo constatou que que o consumo de alimentos com concentrações elevadas de nitrosaminas durante a infância está associado com o risco de cancro em adulto, mas o consumo destes produtos em idade adulta não aumenta o risco desse cancro. O consumo de vegetais verdes, por outro lado, diminui o risco.

Vários estudos sugerem que uma dieta baixa em calorias pode contribuir para uma maior longevidade. O crescimento acelerado e a maturação precoce das nossas crianças, ao contrário do que o senso-comum nos diz, não são indicadores positivos para a sua saúde futura. As consequências dessa maturação precoce, provavelmente relacionada com as nossas dietas, podem ser observadas no tempo da primeira menstruação das meninas adolescentes: quanto mais cedo, maior o risco de cancro da mama em adulta.

O desafio passa por contribuirmos para a educação de gerações conscientes da importância do alimento para a saúde individual e coletiva. Todos estes estudos mostram como semeamos aquilo que acabaremos por colher. A nossa responsabilidade enquanto jardineiros destas vulneráveis plantas em crescimento é dar-lhes as raízes e os nutrientes que farão parte dos seus futuros. E quem diz pepino, diz muitos outros vegetais que pela sua imensa generosidade em milhares de substâncias protetoras, mereciam ser os protagonistas principais das nossas festas e celebrações sociais, e não aqueles outros que afinal contribuem para o terreno perfeito e fértil para as ervas-daninhas crescerem livre e descontroladamente. Ao olharmos o estado da saúde pública, não podemos deixar de nos sentirmos jardineiros descuidados, lançadas que estão as nossas flores ao abandono. Cabe-nos agora restaurar o jardim, antes que seja tarde demais.

Referências:

www.dietandcancerreport.org

https://www.cancer.org/Cancer/CancerBasics/lifetime-probability-of-developing-or-dying-from-cancer

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/14702014

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https://www.bmj.com/content/316/7130/499?view=long&pmid=9501710

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https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/(SICI)1097-0215(20000601)86:5%3C603::AID-IJC1%3E3.0.CO;2-H/full